Tatiana ParanaguáPsicóloga junguiana e autora de ‘Vínculo Fantasma’
Ana e André, ambos na casa dos 30 anos, pareciam ter muito em comum. Em quatro meses, ela já havia conhecido os amigos dele e dormido algumas vezes na casa que dividia com a família. Marcaram de passar as férias juntos, iriam fazer trilhas. Até que um dia ele ligou, desmarcou o compromisso e disse que eles não se veriam mais.
Ana bateu à porta da psicóloga Tatiana Paranaguá, que foi professora da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ) por quase duas décadas. Depois dela, vieram outros, de ambos os lados — os que deixaram e os que foram deixados. Foi quando ela cunhou o termo “vínculo fantasma”, começou a explicá-lo em palestras e resolveu escrever o recém-lançado livro “Vínculo fantasma: Os relacionamentos voláteis da atualidade” (Editora Record).
Mais grave que o ghosting, que, segundo ela, trata-se de um fenômeno bastante restrito a plataformas digitais, o vínculo fantasma ocorre na “vida real”, embora não passe de uma ilusão. No livro, ela explica: parece uma relação que segue uma crescente – tanto de intimidade quanto de convívio –, ambas as partes parecem investir, há características de que um compromisso foi ou está sendo estabelecido, quando, sem explicação, uma das partes termina o relacionamento.
“Uma das marcas registradas do vínculo fantasma é a desconexão entre pensamento, atos e palavras e, nessa desconstrução, o ilusionista faz seus truques”, escreve no livro. Para quem fica para trás, restam a confusão e, “não raro”, “sequelas psicológicas profundas”.
Junguiana, Tatiana recorre aos arquétipos — seriam como espécies de padrões de comportamentos — do psiquiatra suíço Carl Gustav Jung para que consigamos visualizar os dois lados dessa moeda. No fundo, diz ela, encaramos uma verdadeira “epidemia de imaturidade”.
O vínculo fantasma é um sintoma da proliferação do Puer aeternus, a criança eterna, na interpretação da psicoterapeuta alemã Marie-Louise von Franz. “A pessoa se torna parcialmente adulta enquanto núcleos emocionais permanecem infantis, estagnados, na melhor das hipóteses, nos 18 anos, incapazes de se adaptarem às exigências do mundo adulto”, escreve.
Ao Estadão, ela conta que a ideia do livro é ajudar as pessoas a entender que isso está de fato acontecendo: você não está sozinho. Essa consciência, avalia, pode ajudar não só a superar o abandono súbito, mas também a buscar — e encontrar — uma relação verdadeiramente saudável.
Ao mesmo tempo, é possível perceber que há um apelo para que consigamos entender a importância dos vínculos — e compromissos, de maneira geral — para o amadurecimento. “Nascemos para conviver. Os seres humanos são importantes, o outro é importante. Você não vem ao mundo se não for por um outro, uma outra.”
“Os vínculos humanos nos fazem mais humanos e nos fazem entender qual é o sentido da vida. Se eu não me der o direito de estar com o outro, nunca vou saber quem sou. Só nos olhos do outro que consigo me reconhecer e me olhar. A partir daquele olhar que me é devolvido, consigo olhar pra mim”, completa.
Confira os principais trechos da entrevista:
O que é esse vínculo fantasma? Por que a alegoria com o fantasma?
O nome vem do fato de que aquilo ali parece alguma coisa real e, de repente, se desfaz, como se fosse uma assombração, uma ilusão. O fantasma é alguém que parece estar ali, mas quando você pega essa pessoa para ter uma vida concreta, uma vida física, uma vida de presença, se vai do nada, como se fosse um fantasma.
É um vínculo que parece real, como se você estivesse em um relacionamento com aquele ser, mas ele não tem consistência, simplesmente se esvai. Não é uma questão alucinatória, é uma questão ilusória.
Como diferenciar o ghosting do vínculo fantasma? E o que eles têm de semelhante?
O vínculo fantasma é mais grave, porque o ghosting é aquela conversa que parece se iniciar, que vai dar em alguma coisa e, de repente, a pessoa some. Mas, na verdade, ela nunca esteve enquanto presença. É uma coisa muito sustentada pelas plataformas digitais de hoje em dia.
Vínculo fantasma é quando já não é mais digital. A pessoa realmente apareceu para vivenciar alguma coisa. Porque realmente são pessoas que querem viver alguma coisa, existe essa carência intrínseca, se abastecem (do que querem/precisam) por um momento e, depois, aquilo não faz mais sentido.
Isso é um sintoma. É uma emenda pior do que o soneto da imensa carência gerada pela superficialidade que já existe nos relacionamentos.
Embora o conceito de vínculo fantasma implique um término repentino, há sinais prévios aos quais as pessoas possam ficar atentas?
Se fosse tão fácil assim, as pessoas conseguiriam parar antes. É uma situação que parece uma coisa e, de repente, de repente mesmo, nos pega de surpresa. E grande parte disso é o susto, porque tem um investimento de mensagens que são passadas completamente dúbias daquilo que a pessoa está sentindo por dentro ou desejando. Quando começam a surgir os sinais, já significa que, em pouco tempo, aquilo vai acontecer. A pessoa não tem tempo para se preparar. Esse é o problema.
Muito fantasma é ‘emocionado’, vai com tudo porque está carente. Mas depois que ele já tem o tanto de vínculo para se alimentar durante um tempo, e aquilo começa a pedir doação, ele não tem para dar, ou por medo ou porque está seco mesmo, não tem afeto. Vai embora.
Isso é repentino, porque muitas vezes o fantasma acorda com um sinal, com uma viagem, e pensa: ‘Opa, se eu for um pouco daqui para frente, vou estar caracterizando mais, preciso cortar isso aqui agora’. Esses ainda são os melhores, porque há aqueles que vão vivendo, está bom pra eles, vão vivendo, vivendo, e depois, de repente, somem mesmo, quando já têm um relacionamento muito estabelecido. E dizem: ‘eu não quero mais’. ‘Mas por que você não falou nada comigo antes?’.
Não estou dizendo que isso (conversar previamente ou dar uma explicação) vai resolver, e todo mundo vai terminar amorosamente, não vai ter conflito. Mas significa encarar um ser humano e ter coragem de tratar aquele ser humano como um ser humano, com quem você teve algo mesmo, com quem você não queira mais ter algo, mas que você honre a profundidade onde tocou aquele ser humano. É a famosa responsabilidade emocional. Não deixar a pessoa no meio do nada, porque, se não, ela não sabe nem o que ela viveu. Isso é muito cruel. ‘Eu não fui nada?’.
Muito fantasma é ‘emocionado’, vai com tudo porque está carente
Tatiana Paranaguá, psicóloga
Quais são os possíveis efeitos psicológicos para uma pessoa que é abandonada num vínculo desses?
A pessoa pode enfrentar uma crise muito grande. Ela vai deprimir. Vai se sentir desvalorizada, vai se sentir muito insegura, pode se retrair para ter outros relacionamentos, pode se tornar uma pessoa extremamente desconfiada também. Isso pode fazer com que ela até perca oportunidades de bons relacionamentos, porque já não consegue distinguir o que é real ou não. Ela não quer que aconteça de novo.
Quem sofre com isso, costuma demorar para se recuperar. Às vezes, pode assumir uma postura que é contra aquele desejo mais profundo dela de se relacionar, pelo medo, pela evitação dessa dor, de ter que passar por tudo de novo. Começa a usar aquele mantra do “antes só do que mal acompanhado”, não porque realmente pense assim, mas pelo medo de sofrer. Não é simplesmente você se refazer de um baque.
A pessoa pode ter uma reação de se tornar aquilo que a fez sofrer. Porque antes ser o algoz do que a vítima. ‘O mundo está assim mesmo’. ‘Ninguém quer nada’. Uma atitude cínica, mas que, na verdade, não deixa de ser uma proteção, torta ou não.
Como as pessoas podem lidar com o término de um vínculo fantasma?
Não tenho uma fórmula mágica para cada pessoa. Vamos ter que ver dentro daquela pessoa o tanto que ela ficou machucada. Às vezes, um abalo aparece para a pessoa ressignificar coisas. Às vezes, tinha uma ingenuidade também, que não era uma coisa boa. Não é exatamente fazer a pessoa voltar ao que era antes. É ajudar a assimilar a experiência e, com ela, se tornar mais forte ainda.
Sair do lugar de vítima sem virar o algoz e sem trair a si mesmo. Quando a pessoa desiste completamente, fica no lugar de vítima, ou vira algoz, trai a si mesma, que, no final das contas, tem o impulso natural de querer ter um bom relacionamento com alguém construtivo. É encontrar dentro da pessoa a força para ela ser fiel a quem ela é.
Esse rompimento abrupto pode doer e causar sofrimento também para aquele que abandona?
No livro, eu coloco dois tipos de fantasma. Aquele que é um Narciso (personagem da mitologia grega), e é muito complicado de ele se reconhecer, ter uma dor pelo outro. São os mais ‘perigosos’. Agora, nem toda pessoa que age assim é pérfida. Às vezes, é uma pessoa que está machucada, é extremamente imatura, não sabe lidar, se sente culpada, diminuída, incapaz, e sofre também por ser aquela pessoa. Ela própria sofre de uma neurose que gostaria de vencer. Mas, na maior parte das vezes, a vítima sai mais machucada. Essa é a verdade.
Eu tive uma grata surpresa: depois que dei um curso sobre [o assunto], e depois que lancei o livro, muitos fantasmas bateram na porta. Diziam assim: ‘O fantasma sou eu, me reconheci, mas não quero ser assim, não sei por que faço isso, você pode me ajudar?’.
Como saber se eu não estou superestimando o que vivi com alguém ou se o imaturo fui eu de não enxergar que aquele relacionamento não estava mais funcionando?
Eu escrevi no livro que nem tudo que some é fantasma. A pessoa vai precisar ter um bocado de coragem, fazer um autoexame para entender que, de repente, supervalorizou alguma coisa que nunca foi posta. No vínculo fantasma, a pessoa dá sinais claros de que algo está existindo, às vezes pede em namoro, adota um cachorro junto, e some.
Agora, há pessoas que nunca reconhecem que tiveram uma visão equivocada. Ela tem uma distorção de si mesma e das situações de acordo com carências ou com neuroses. Qualquer pessoa que dá o mínimo de afeto, ela projeta que vai casar e ter cinco filhos. É uma pessoa tão carente, mas tão carente, que não quer conhecer alguém para ter um relacionamento profundo. Só quer alguém para tapar o buraco da carência.
Quando eu quero um relacionamento profundo, conheço a pessoa, a gente conversa, e eu avalio. ‘A gente não tem muita coisa em comum, é uma pessoa legal, mas não teve química, não teve papo, teve uma coisa, acho que não’. Você vê a outra pessoa. (Já para a pessoa de carência extrema) ‘Apareceu, se interessou por mim, tem que ser esse agora’.
Quando você tem uma pessoa que tem um padrão, você tem que descobrir o que está acontecendo. Às vezes, tudo para ela é uma projeção. E, outras vezes, também há questões mais profundas a serem identificadas.
Você acha, então, que essa repetição, esse padrão, é importante para a pessoa perceber que talvez o problema esteja nela?
Com certeza, isso tanto de um lado como do outro. Uma pessoa ser um fantasma da vida de alguém uma vez na vida: coisas acontecem, a gente erra, temos o direito de ser imaturos. O negócio é quando vira um padrão. Quantas vezes você já fez isso? Você continua caindo na mesma armadilha?
Você escreve que o vínculo fantasma não é de hoje, mas que agora parece ter encontrado um terreno fértil. O que aconteceu?
Estamos vivendo uma crise de imaturidade. As pessoas estão tendo, primeiro, um terreno fértil para espalhar o Puer aeternus, do livro da Marie-Louise Frantz, que é um arquétipo que o Jung apresentou e ela desenvolveu brilhantemente. Quando o puer prolifera, esse tipo de coisa prolifera também.
O surto de imaturidade é enorme. As pessoas não estão assumindo quase nada, não querem assumir nada. E a vida é feita de assumir coisas, se não a gente não cresce. Eu preciso de compromisso para viver, mas as pessoas acham que não precisam.
Há coisas valiosas de assumir um compromisso, porque o compromisso você pode achar que é com o outro, mas é com você. Esse é o grande equívoco. Você está fazendo algo por você, que é escolher ao que vai ser fiel e que ser humano você vai ser. Você se torna o ser humano que você quer ser. Se não, não se torna ninguém, é uma eterna criança.
Você chegou a usar, inclusive, o termo “epidemia de imaturidade” no livro. Poderia explicar mais?
Hoje em dia, a pessoas tem mais tempo, mais maleabilidade de escolhas. As coisas não estão mais tão fixas quanto antes. Nós temos métodos de cultivo, geladeira e outras coisas que fazem com que não tenhamos aquelas necessidades dos nossos ancestrais, de plantar tal dia, secar tal dia, colher. Porque se você não se abastecer, é morte certa naquele ano. Isso fazia com que as pessoas tivessem um compromisso muito grande com a própria sobrevivência.
Amadurecer é ter vínculos sabendo que isso é mais importante para o seu crescimento do que para o outro
Tatiana Paranaguá, psicóloga
Sabemos que, claro, pessoas vivem vidas diferentes, com realidades econômicas diferentes, não estou querendo anular isso. Mas vemos que as pessoas que têm acesso razoável a esse nível de tecnologia, de opções de trabalho, podem ter uma flexibilidade de vida. Pode escolher não se comprometer com isso, aquilo e aquilo outro. E isso dá uma sensação de que ela é autossustentável, de que não precisa de nada nem de ninguém, que tudo vai sempre, sem a participação dela, sustentá-la. É como se o universo fosse aquele eterno pai da mesada.
Quando a pessoa já está mais madura, percebe que é uma peça de algo. Amadurecer é ter vínculos sabendo que isso é mais importante para o seu crescimento do que para o outro. Quem consegue se doar a essa vida adulta, sabe muito bem qual é o valor dela.
(Para algumas pessoas) A vida adulta parece que é uma vida chata. Oi? Não pode ser chata. A vida de criança é legal, a vida de adolescente é legal, jovem é legal, adulto é legal, terceira idade é legal. Tudo tem que ser legal, porque o tempo não para. Eu não tenho como estancar o tempo. E o imaturo quer estancar o tempo e tem a ilusão de que pode fazer isso por conta do que é oferecido. Só que, emocionalmente, isso não se sustenta por muito tempo. Ele pode nunca precisar plantar um feijão, mas se não plantar afeto… Se ninguém for prioridade dele, ele nunca vai ser prioridade de ninguém. A conta bate na porta.
Uma coisa que me questionei lendo é se o vínculo fantasma cresceu ou só está mais evidente. Isso porque você localiza esse fenômeno num momento de flexibilização extrema das responsabilidades afetivas, quase num contra-movimento ao que foi o casamento nas décadas passadas. Não precisamos pensar também nos abandonos simbólicos, no estilo ‘casados, mas afetivamente distantes’? O que você pensa sobre isso?
O vínculo fantasma é quando a pessoa não tem disposição para realmente estabelecer um compromisso. Ele sempre existiu sim, mas a epidemia ocorre porque ele pode hoje se proliferar, porque ninguém mais é malvisto quando faz isso. Antigamente, a pessoa podia até estar emocionalmente distante, mas era muito pouco provável que não honrasse um compromisso, por mais que isso doesse. Ela podia ter uma distância emocional, mas é outro fenômeno.
Não estou dizendo que era saudável, mas sim que, hoje, a pessoa pode correr facilmente. Então, aquilo que seria para facilitar um relacionamento verdadeiro, se tornou não querer um relacionamento verdadeiro nunca. Se oito era ruim, posso garantir que 80 também é.
Vínculo fantasma tem idade, geração, ou é um fenômeno para todos, independente de quando se nasceu, que vivem os dias de hoje?
Já atendi fantasmas de 60 anos. O problema é de uma imaturidade que vem de muito tempo e que está eclodindo agora.
Como podemos nos proteger deles?
Você se protege tendo consciência de onde você está, não sendo ingênuo. Quando você não é ingênuo, ganha ferramentas para ir viver, porque tem como se defender. Não é não ir a campo, mas é ir com as ferramentas certas. E a consciência psicológica é a maior ferramenta. Eu posso ir a campo, mas sei que isso existe, tenho que prestar atenção.
O que é importante para ter um relacionamento saudável nos dias de hoje? Qual talvez seja o centro dessa relação legal, saudável?
Primeiro, você buscar alguém que você sinta que pode ‘construir’ essa pessoa de alguma forma positiva. Você auxilia na construção, no crescimento dessa pessoa, e essa pessoa naturalmente também auxilia na sua construção. Estar com essa pessoa faz você sentir que se expande. Ou você se torna uma pessoa emocionalmente mais estável. Ou você era uma pessoa que não tinha muito iniciativa, e com essa pessoa, você tem. Essa pessoa te dá paz.
Essa pessoa é um companheiro ou uma companheira, não é uma companhia
Tatiana Paranaguá, psicóloga
Não é dependência, é parceria. Essa pessoa é um companheiro ou uma companheira, não é uma companhia. Não é mirar no êxtase, é mirar na paz profunda.