Avanços contra o AVC, que mata milhões por ano, parecem ter estagnado no mundo. Por quê?

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A carga global do acidente vascular cerebral (AVC) continua a crescer, de acordo com estudo do Global Burden of Disease (GDB) publicado recentemente na revista The Lancet Neurology. Em 2021, foram 11,9 milhões de novos casos no mundo e 7,3 milhões de mortes, consolidando o AVC como terceira principal causa de óbitos, atrás apenas da doença cardíaca isquêmica e da covid-19.

No Brasil, no mesmo ano, foram 239 mil novos casos e 126 mil mortes pela doença, caracterizada por uma alteração do fluxo sanguíneo no cérebro e dividida em dois tipos: isquêmico, o mais comum, que ocorre devido ao “entupimento” de uma artéria, ou hemorrágico, o mais letal, causado por um sangramento.

Em 2021, o AVC foi a terceira principal causa de óbitos no mundo, atrás apenas da doença cardíaca isquêmica e da covid-19 Foto: SewcreamStudio/Adobe Stock

O aumento dos números absolutos de AVC se deve, em grande parte, ao crescimento e envelhecimento populacional — a doença se torna mais prevalente com o avançar da idade. Quando os cientistas ajustam as taxas de incidência, prevalência e morte, é possível ver que, de 1990 para cá, houve uma redução. A taxa de incidência caiu 21,8% nas últimas três décadas, e as mortes, 39,4%. No Brasil, as quedas foram de 47,7% e 62,2%, respectivamente.

Mas os avanços obtidos nas últimas décadas parecem ter estagnado ou mesmo regredido em alguns países. Nos Estados Unidos, por exemplo, a taxa de novos casos de AVC, no período de 2015 a 2021, teve um crescimento médio anual de 0,26%, enquanto, no apanhado de 1990 a 2021, houve queda anual de 1,31%. No Brasil, no mesmo período (de 2015 a 2021), a redução média anual foi de apenas 0,75%, ante a uma redução média anual de 2,09% nos últimos 30 anos.

“Os achados do nosso estudo continuam a apontar que as estratégias de prevenção de AVC atualmente utilizadas não são suficientemente eficazes para interromper, muito menos reduzir, a carga crescente do AVC”, escreveram os pesquisadores do GDB, estudo iniciado pela Organização Mundial da Saúde (OMS) em 1990 para acompanhar a carga de doenças, lesões e fatores de risco. O que os especialistas se perguntam é: por quê?

“As coisas que vinham bem ao longo do tempo não estão mais indo tão bem”, diz o epidemiologista Theo Vos, um dos autores sêniores do estudo, ao Estadão. “Um dos fatores mais importantes é o enorme aumento da obesidade. A obesidade, por si só, e muitas vezes pelo caminho do diabetes, tem um impacto significativo em doenças como o AVC.”

“De certa forma, pequenos avanços contínuos na pressão arterial estão sendo neutralizados pelo aumento da carga de fatores de risco como obesidade, diabetes e outros. No entanto, isso não se manifesta da mesma forma em todo o mundo”, completa.

O sobrepeso e a obesidade foram os fatores de risco que mais cresceram em importância nos últimos trinta anos, seguidos da temperatura ambiental elevada — outro fator de preocupação diante das mudanças climáticas. Segundo a OMS, a obesidade adulta em todo o mundo mais do que dobrou desde 1990 e, entre adolescentes, quadruplicou. Em 2022, 1 em cada 8 pessoas no mundo vivia com obesidade.

Vos reforça ainda que a pressão alta continua a ser o principal fator de risco. No mundo, os fatores mais importantes foram: hipertensão, exposição à poluição do ar por material particulado, tabagismo e colesterol LDL elevado. No Brasil, foram: hipertensão, colesterol LDL elevado, diabetes, tabagismo e sobrepeso e obesidade.

Segundo ele, nos tornamos melhor em controlar a fatores de risco de quem já teve um AVC: o número de sobreviventes aumentou para 93,8 milhões em 2021, um crescimento de 86% em relação a 1990. O que não é verdade para quem ainda não sofreu um acidente vascular cerebral. Só para a hipertensão, de acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), mais de 50% das pessoas acometidas não sabem que tem e não tratam a doença. Mesmo entre os diagnosticados, apenas um a cada cinco cuida realmente do problema.

Mais jovens em risco

Globalmente, o estudo mostra um aumento nas taxas de incidência e prevalência de AVC em todas as idades abaixo de 70 anos, e uma redução para pessoas com 70 anos ou mais.

Para os pesquisadores, é provável que isso esteja relacionado ao aumento da prevalência de hipertensão (incluindo casos mal controlados e não controlados), sobrepeso ou obesidade e diabetes tipo 2 em jovens adultos, principalmente em países de renda baixa e média, o que inclui o Brasil.

Segundo o cardiologista Álvaro Avezum, da Sociedade de Cardiologia do Estado de São Paulo (Socesp), que não esteve envolvido no estudo do GBD, nos últimos 20 anos, eventos cardiovasculares, como infarto e AVC, têm ocorrido cada vez mais cedo nesses países.

Para ele, isso está intimamente ligado com estilo de vida, ou seja, falta de controle de fatores de risco. “Vivemos um regime de produção de eventos cardiovasculares que começa já na infância e adolescência”, alerta.

“A mudança na carga de AVC para populações mais jovens provavelmente continuará a menos que estratégias preventivas eficazes sejam implementadas com urgência”, afirma Catherine Johnson, uma das autoras do estudo, em comunicado à imprensa.

Incapacidade

O estudo traz ainda outro fator desafiador: o AVC é a quarta causa de incapacitação no mundo.

É muito frequente que, em um AVC, a pessoa sofra uma incapacidade permanente ou pelo menos uma incapacidade temporária de longo prazo, diz o neurocirurgião Marcelo Valadares, pesquisador da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), não envolvido no estudo do GDB.

“O AVC pode levar o paciente a um estado de incapacidade muito grave, a ficar acamado, com dificuldade de dirigir, andar, manusear um equipamento”, acrescenta.

Essa incapacidade pode se traduzir de diferentes formas, a depender da área afetada e da extensão do evento. “Seja hemorrágico ou isquêmico, em geral, (o AVC) vai atingir grandes artérias do cérebro que, quase via de regra, são responsáveis pelo funcionamento de uma região com uma função motora”, comenta Valadares. Mas também pode haver prejuízos cognitivos, emocionais, de linguagem, na deglutição.

O que podemos fazer?

“Nunca se soube tanto para prevenir (um AVC), mas há uma lacuna entre o saber e o fazer”, comenta Avezum, retomando um estudo com 32 países que apontou que controlar dez fatores de risco potencialmente modificáveis poderia evitar 90% dos AVCs.

Para o médico, alguns desses fatores precisam ser encarados com urgência: hipertensão, colesterol LDL elevado, sedentarismo, alimentação desequilibrada, estresse e depressão.

Mas como fazer isso quando os sintomas de colesterol, hipertensão ou diabetes, por exemplo, podem demorar muito tempo para aparecer, levando as pessoas a acreditarem estar saudáveis?

Ele aposta na criação de estratégias em conjunto. “Soluções criativas para mudança de estilo de vida para melhor têm que vir de um processo de cocriação com a sociedade”, defende. “Como falar em atividade física para alguém que não tem um local seguro (para fazer exercício)? Em alimentação saudável, quando uma comida processada é mais barata e uma comida saudável é mais cara?”, questiona.

Nesse sentido, Vos aponta que não se pode focar apenas numa cobrança individual para que cada um controle os fatores de risco por conta própria. “Nossa experiência mostra que tentar mudar o comportamento das pessoas dizendo a elas o que é bom e o que é ruim é extremamente difícil. As pessoas são teimosas.”

“O mais eficaz nesse contexto são coisas como tributação e regulamentações”, comenta ao citar como a indústria alimentícia de ultraprocessados reproduz estratégias passados do tabaco e álcool.

Em comunicado à imprensa, Catherine chama a atenção para a necessidade de agir também contra os fatores de risco ambientais. “Dado que a poluição do ar está reciprocamente ligada à temperatura ambiente e às mudanças climáticas, a importância de ações urgentes para o clima e medidas para reduzir a poluição do ar não podem ser subestimadas.”

Valadares lembra que houve progresso, embora lento, nas últimas décadas. Por isso, segundo ele, é preciso também não desistir da prevenção. “Estamos conseguindo (progredir), mas modificar os hábitos da população é algo muito lento. É uma coisa que leva anos, décadas e, às vezes, leva gerações. O que não podemos é desistir.”

Fonte: Externa

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