“Criei há 25 anos o que Musk fez agora”, diz Miguel Nicolelis

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Após 30 anos como professor, Miguel Nicolelis começou uma nova jornada com seu instituto, que pretende ajudar mais de um bilhão de pessoas com doenças medulares e neurológicas.

O brasileiro Miguel Nicolelis é um dos maiores nomes da neurociência mundial. O médico, doutor pela Universidade de São Paulo (USP) e Ph.D em Fisiologia e Biofísica pela Universidade de Hahnemann, nos Estados Unidos, foi professor e pesquisador por mais de 30 anos no departamento de neurociência e engenharia biomédica da Universidade de Duke — que figura constantemente no topo das listas de melhores universidades do mundo.

No Brasil, o trabalho de Nicolelis ganhou destaque durante a Copa do Mundo de 2014, quando ele liderou o projeto que permitiu que um jovem paraplégico chutasse a bola na abertura da competição. O chute simbólico, assistido por mais de um bilhão de pessoas, foi possível graças a um exoesqueleto alimentado por uma interface cérebro-máquina.

Recentemente, Elon Musk ganhou as manchetes mundo afora ao implantar um chip em um paciente da Neuralink, sua startup de estudos neurológicos. No anúncio oficial, a empresa publicou: “O primeiro humano recebeu um implante da Neuralink”. No entanto, o assunto repercutiu como se o bilionário fosse pioneiro na área — título que Miguel Nicolelis reivindica.

Atualmente, após a aposentadoria do cargo acadêmico na universidade norte-americana, o cientista decidiu ampliar seu projeto pessoal, o Instituto Nicolelis de Estudos Avançados do Cérebro, que pretende ajudar mais de um bilhão de pessoas com doenças medulares e neurológicas. 

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O paraplégico Juliano Pinto deu o primeiro chute da Copa do Mundo de Futebol de 2014 com o exoesqueleto desenvolvido pela equipe de Miguel Nicolelis.

Em entrevista à Forbes Brasil, Miguel Nicolelis compartilha algumas novidades do instituto, reforça a importância da ciência para o avanço da medicina e provoca reflexões sobre o papel da tecnologia:

FB: Por que você escolheu trabalhar com a tecnologia de interface cérebro-máquina não-invasiva? 

MN: Eu criei há 25 anos, no meu laboratório, as técnicas de implantes de interface cérebro-máquina — à época testadas em animais — para entender como elas deveriam funcionar.

Entretanto, em 2014, quando eu voltei para o Brasil durante o projeto da Copa do Mundo, eu entrevistei diversos pacientes e, junto com a minha equipe, cheguei à conclusão quase unânime de que eles queriam voltar a andar, mas sem se submeter a uma cirurgia.

Então, começamos a quebrar a cabeça para construir alternativas não-invasivas. E nós conseguimos ir além, as interfaces cérebro-máquina não-invasivas que testamos conseguiram ajudar os pacientes de maneira crônica. Eles recuperaram movimentos de forma parcial, voltaram a sentir determinadas partes do corpo, algo que nunca tinha sido feito em décadas de pesquisa e tratamentos de lesão medular.

De lá para cá, comecei a concretizar a ideia de que, para escalar esse tratamento, para que a tecnologia possa atingir o máximo possível de pacientes, não tem como fazer isso com técnicas invasivas. Por outro lado, você pode fazer uma touca de natação com eletrodos que se aplicam ao couro cabeludo (sem invadir o cérebro), por algumas centenas de dólares.

Além disso, você pode fazer com qualquer pessoa sem nenhum risco. Esse é o primeiro mandamento da Medicina, tudo o que você fizer não pode colocar a pessoa em mais risco do que ela já está.”

FB: De onde surgiu o interesse de Elon Musk pela interface cérebro-máquina?

MN: Nós, cientistas, precisamos esperar anos para que as revistas científicas publiquem nosso trabalho. Mas aí chegam pessoas como o Elon Musk, que só publicam algumas linhas nas redes sociais, sem nenhuma informação, nenhum dado, nenhuma referência, e as pessoas acreditam veementemente. É uma injustiça com os verdadeiros profissionais, cientistas e pesquisadores.

Quando ele fala que o paciente dele foi bem sucedido e controlou um cursor de computador, desculpa, mas meu laboratório fez exatamente a mesma coisa há 20 anos com onze pacientes. E tem quem acredite que isso é super revolucionário.

Outra questão, além da falta de embasamento, é a mercantilização da pesquisa científica. Hoje virou moda na comunidade científica criar startups, só que isso é um problema. Porque a prioridade deixa de ser o estudo e passa a ser o dinheiro. Eles publicam casos de um paciente para conseguir levantar investidores. Só que isso está errado. Na ciência, nós não podemos afirmar nada a partir de um paciente.

Essa cultura de startups cria um grande conflito de interesses. Hoje, se você publica algo que refuta a tese de uma startup, você pode destruir um negócio de milhões de dólares. 

FB: Quais são os riscos dessa mercantilização da ciência?

MN: Olha, tem muita ideia boa que vai funcionar e já está funcionando. Mas tem coisa que é fantasia de bilionário. Temos que saber separar. Até porque, não existe nenhuma mágica, e é muito duro para uma família que tem uma pessoa com deficiência, por exemplo, porque eles podem acreditar que que existe uma fantasia, e na verdade não existe.

Quando o Elon Musk fala que ele vai usar um chip para pessoas jogarem videogame com o pensamento, ou fazer upload de conteúdo no cérebro, ele está inspirado em filmes de ficção científica. Essas coisas nunca vão acontecer. Elas vão contra as leis da física, porque o cérebro não é um computador, ele é uma máquina analógica biológica orgânica.

E, em segundo lugar, nenhum sistema regulatório no mundo vai aprovar que façam implantes cerebrais em pessoas saudáveis, porque existem riscos de infecção, rejeição, parar de funcionar, etc. Enfim, nenhum bom neurocirurgião vai querer fazer isso. Eu sei disso porque no meu laboratório nós temos o recorde mundial de duração, foram nove anos de funcionamento de chips implantados em macacos.

FB: Como você enxerga o futuro da tecnologia aplicada na ciência? 

MN: Nós criamos quase que um culto à tecnologia, e as pessoas têm pouco conhecimento quando elas usam a palavra tecnologia. Desde que o termo se associou à modernidade, a transformações de grande impacto, ficou dissolvido no imaginário coletivo.

E isso não é necessariamente verdade, a tecnologia não vai resolver os problemas dos humanos, os humanos vão ter que resolver seus próprios problemas. A tecnologia não é um milagre do mundo. Ela tem que ser exagerada com um olhar crítico e ético.

No caso da medicina, é óbvio que a tecnologia ajuda, muitas ferramentas foram fundamentais no desenvolvimento da área, mas não é porque você inventa algo inédito que isso pode ser implementado na vida clínica e cotidiana dos médicos.

Porque se o mecanismo não oferecer segurança, se não for eficiente e se não for acessível do ponto de vista de custo, ele não vai ser incorporado. Esses três critérios têm que ser preenchidos de maneira categórica.

FB: O que é o Instituto Nicolelis de Estudos Avançados do Cérebro? 

Miguel Nicolelis: Depois da pandemia, no final do período crítico, eu decidi sair da Duke depois de 30 anos e escolhi criar o Instituto Nicolelis de Estudos Avançados do Cérebro, que tem sede em São Paulo (Brasil), na Carolina do Norte (EUA), e agora em Milão (Itália). 

Nosso objetivo é coordenar e disseminar os protocolos de tecnologias não-invasivas por diferentes partes do mundo para tratar pacientes com doenças neurológicas e medulares, como paraplegia, Parkinson, derrame, depressão e ansiedades crônicas e assim por diante.

Segundo a OMS, quase dois bilhões de pessoas no mundo sofrem com esse tipo de doença. Então optamos por um tipo de tratamento escalável, eficaz e duradouro — o que não é possível com técnicas invasivas. 

Esperamos ter hubs espalhados por diferentes continentes. Estamos em negociação com diferentes instituições, de diversos países, e vamos anunciar todos os nossos resultados.”

No início de março, junto com o hospital IRCCS San Raffaele, o maior hospital privado da Itália, nós anunciamos o primeiro polo de neurotecnologia institucional da Europa. Esse é só o começo, a meta é levar hubs como esse para todos os continentes. 



Fonte: Externa

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