‘Magras, magras, magras’: internautas viralizam ao promover comportamentos de risco para emagrecer

Medicina Notícias

Se você costuma navegar pelo TikTok, é possível que já tenha se deparado com a trend “Magras, magras, magras”. Nos vídeos, que acumulam milhares de visualizações desde o fim de 2024, internautas romantizam e celebram práticas preocupantes, como contrair dengue, ter uma intoxicação alimentar, passar dias sem comer e compartilhar medicamentos, em nome de um suposto emagrecimento.

Em uma das publicações, duas amigas comemoram “10 horas de trabalho sem pausa para comer”. Outra mostra um rapaz e uma mulher pulando e, ao fundo, a frase “eu e minha amiga depois de combinar de adoecer para perder 10 kg”.

Também há exemplos de pessoas — inclusive profissionais de saúde — exibindo pesos em balanças, enquanto os comentários incentivam a redução dos números. “Eu depois de ver que falta pouco para eu sair voando”, diz a legenda de um desses vídeos.

Para a nutricionista Marcela Kotait, coordenadora do Ambulatório de Anorexia do Instituto de Psiquiatria (IPq) da Universidade de São Paulo (USP), a trend reflete a força da pressão estética e da “cultura da magreza”, um problema que atinge principalmente meninas e mulheres.

“Esses vídeos promovem a ideia de que ser magro é mais importante do que ser saudável. Isso impulsiona dietas restritivas e atitudes que podem evoluir para problemas de saúde sérios, além de reforçar a gordofobia e padrões irreais de beleza”, alerta.

Likes a qualquer custo?

Para especialistas ouvidos pelo Estadão, o principal risco relacionado à trend “Magras, magras, magras” é que ela pode contribuir diretamente para a normalização de comportamentos que podem levar ao desenvolvimento ou agravo de transtornos alimentares — condições caracterizadas por uma relação disfuncional com a comida e o corpo, impactando tanto a saúde física quanto a mental.

Esses comportamentos, segundo o endocrinologista Alexandre Hohl, diretor da Associação Brasileira para o Estudo da Obesidade e Síndrome Metabólica (Abeso), podem ser associados principalmente à anorexia, caracterizada pela restrição extrema da alimentação, e à bulimia, marcada por episódios de compulsão alimentar seguidos de comportamentos compensatórios, como vômitos autoinduzidos, uso inadequado de laxantes ou exercícios físicos excessivos.

Adolescentes participam da trend que circula no TikTok Foto: Reprodução/TikTok

As duas condições, segundo Holh, podem ser desencadeadas por uma combinação de fatores, como baixa autoestima, autocrítica excessiva, traumas, comorbidades como ansiedade e depressão, predisposição genética, mudanças abruptas na vida (como divórcio, mudança de escola ou luto), além da pressão estética, que tem a mídia e as redes sociais como fortes aliadas.

“Muitas vezes, uma dieta restritiva pode ser o gatilho inicial, levando à perda de peso e a elogios de conhecidos. Isso reforça o comportamento, que pode parecer inofensivo no começo, mas, quando aliado a algum tipo de vulnerabilidade emocional, pode evoluir para um transtorno alimentar”, explica a psicóloga Rogéria Trajano, especialista em transtornos alimentares.

Ela diz que muitos podem considerar a trend inofensiva, mas é essencial refletir sobre como ela pode abalar outras pessoas com o culto à magreza como sinônimo de beleza e aceitação.

Segundo Kotait, o risco é ainda maior para adolescentes, maioria esmagadora entre aqueles que promovem esse tipo de vídeo na internet. “Além do maior do tempo de tela, é comum que pessoas mais jovens tenham maior insatisfação corporal. Afinal, estamos falando de uma fase de construção da relação com o corpo, peso, alimentação, e essas questões acabam se entrelaçando de forma muito intensa, especialmente entre as meninas.”

Além disso, a romantização de aspectos associados ao problema pode servir de gatilho para quem convive ou já conviveu com algum tipo de transtorno, reativando comportamentos prejudiciais e dificultando o processo de recuperação.

“Algumas pessoas podem, inclusive, aderir a essa trend como um meio de validação, tentando minimizar o sofrimento e se convencer de que comportamentos nocivos são normais, o que dificulta a busca por ajuda profissional”, alerta Rogéria.

Estamos falando de um problema sério, mas que está sendo minimizado e até mesmo passando despercebido porque se tornou natural apelar para atitudes extremas em troca de likes

Rogéria Trajano, psicóloga

A busca pela viralização também é uma preocupação de Hohl. “(A trend) mostra como as pessoas estão dispostas a se submeter a atitudes questionáveis para atrair atenção”, diz. “O pior é que a maioria vê isso e minimiza dizendo: ‘Ah, mas é só uma brincadeira’”, lamenta o médico.

Marcela menciona ainda outra preocupação com a dinâmica dos vídeos: a sensação de desafio, quase como um teste de força de vontade. Para ela, essa percepção alimenta a crença de que “querer é poder”, sugerindo que basta determinação para conquistar a magreza, independentemente dos meios utilizados.

“A restrição alimentar autoinduzida, por exemplo, está sendo compartilhada como se fosse um comportamentos válido e até mesmo admirado”, observa. “Mesmo que alguns não sejam reais e sirvam apenas para atrair engajamento, eles não estão isentos da responsabilidade ao perpetuar práticas perigosas em busca de corpos cada vez mais distantes da realidade, ao mesmo tempo que reproduzem gordofobia indiretamente.”

Padrões estéticos: um movimento cíclico

Não é a primeira vez que surge uma tendência como essa. Conteúdos que promoviam a supervalorização da magreza de forma escancarada, inclusive com fóruns de incentivo a transtornos alimentares, eram frequentes em redes sociais como Tumblr e Orkut.

“Isso nos faz perceber que a pressão estética é cíclica, impulsionada também por um mercado que, constantemente, cria e destrói padrões para estimular o consumo de roupas, produtos e medicamentos”, afirma Marcela.

A diferença em relação ao passado, segundo a nutricionista, é a frequência com que os usuários são bombardeados por conteúdos que alimentam esses padrões. “O poder das redes sociais em influenciar o que consideramos bonito, aceitável e desejável aumentou muito, especialmente com a popularização de filtros, plataformas que priorizam as imagens em vez dos textos e influenciadores que projetam ‘vidas perfeitas’.”

Estudantes de medicina e de outros cursos da área da saúde promovem os vídeos na rede social Foto: Reprodução/TikTok

Para Hohl, o impacto da pandemia também não pode ser ignorado. Ele observa que o isolamento social aumentou o tempo de exposição a conteúdos digitais, impactando a autoestima. “As pessoas passaram a se comparar ainda mais, o que contribuiu para a adesão a comportamentos de risco, como dietas extremamente restritivas. O fenômeno das trends que vemos hoje também pode ser um reflexo disso.”

Marcela destaca, contudo, que o problema não está em ser magro, mas na idealização desse corpo como sinônimo de beleza, felicidade e aceitação social. “O que vemos hoje é uma narrativa que sugere que é fácil atingir a magreza e que só assim as pessoas serão bonitas e aceitas”, opina.

O foco deve estar na saúde, não em corresponder a um padrão idealizado que, além de ser inalcançável na maioria das vezes, pode trazer sérios prejuízos físicos e emocionais

Marcela Kotait, nutricionista

Riscos dos transtornos alimentares

Segundo Hohl, os transtornos alimentares representam sérios riscos à saúde. Um dos mais comuns é a desnutrição, frequentemente associada à restrição alimentar característica da anorexia nervosa. Esse quadro pode enfraquecer o sistema imunológico e comprometer órgãos como o coração, fígado e rins.

“Em casos graves, podem surgir complicações como arritmias, insuficiência cardíaca e levar até mesmo à morte”, alerta o endocrinologista.

Além disso, comportamentos como o vômito autoinduzido, típico da bulimia, podem causar danos ao esôfago e provocar desidratação. A falta de nutrientes também afeta a produção hormonal, sendo especialmente prejudicial para adolescentes. “Isso pode causar irregularidades menstruais, osteoporose precoce e até infertilidade”, diz Hohl.

Como perceber os transtornos?

“Os transtornos não são fáceis de ser identificados e, muitas vezes, podem passar despercebidos, já que o sinais podem ser confundidos com preocupações normais com saúde ou aparência”, afirma Rogéria.

Por isso, é preciso que sejam observadas mudanças de comportamento e de estado de humor, como realização de dietas extremamente restritivas, preocupação excessiva com o peso, perda de peso repentina e inexplicável, isolamento social, exercícios físicos em excesso e alterações físicas, como queda de cabelo e descamação da pele.

O tratamento dos transtornos alimentares varia conforme o tipo e a gravidade do caso, mas geralmente inclui acompanhamento psicológico e nutricional. Já nos casos mais graves, como quando há desnutrição severa, complicações clínicas ou resistência ao tratamento, a internação pode ser necessária.

“Além disso, transtornos alimentares frequentemente estão associados a questões emocionais, como ansiedade e depressão. Se qualquer um desses sinais for observado, é fundamental buscar ajuda profissional o quanto antes”, orienta a psicóloga.

Onde buscar ajuda

Se você está enfrentando algum tipo de transtorno alimentar ou conhece alguém nessa situação, veja abaixo onde encontrar ajuda:

Centro de Valorização da Vida (CVV)

Se estiver precisando de ajuda imediata, entre em contato com o Centro de Valorização da Vida (CVV), serviço gratuito de apoio emocional que disponibiliza atendimento 24 horas por dia. O contato pode ser feito por e-mail, pelo chat no site ou pelo telefone 188.

Canal Pode Falar

Iniciativa criada pelo Unicef para oferecer escuta para adolescentes e jovens de 13 a 24 anos. O contato pode ser feito pelo WhatsApp, de segunda a sexta-feira, das 8h às 22h.

SUS

Os Centros de Atenção Psicossocial (Caps) são unidades do Sistema Único de Saúde (SUS) voltadas para o atendimento de pacientes com transtornos mentais. Há unidades específicas para crianças e adolescentes. Na cidade de São Paulo, são 33 Caps Infantojuvenis. Além disso, a busca por ajuda por ser feita por meio do Programa de Transtornos Alimentares (Ambulim) do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas e da Associação Brasileira dos Transtornos Alimentares (AstralBR).

Mapa da Saúde Mental

O site traz mapas com unidades de saúde e iniciativas gratuitas de atendimento psicológico presencial e online. Disponibiliza ainda materiais de orientação sobre transtornos mentais.

Fonte: Externa

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