“Por que tem um telefone vermelho no meio do palco?”, pergunta Ashley, uma publicitária de Boston, de 30 anos. Ela e alguns outros poucos gringos estão entre as centenas de brasileiros que lotam a casa noturna Speakaesy, no centro de Austin (Texas), na terça (12). O ponto alto da noite é o show de Marcelo D2, que apresenta novo álbum, “Iboru”, o que chama de “novo samba tradicional”.
Puxando a roda vem o Marcelo, empresário. “Era esperado que eu fizesse um disco de samba. Mas eu vejo esse projeto como arco e flecha: puxo lá atrás para acertar lá na frente”, diz o artista, que veio à cidade disposto a conversar com empresários, captar recursos e cumprir seu objetivo principal, que é levar arte de graça para a população brasileira, mobilizando as pessoas.
No Centro de Pesquisa Avançado do Novo Samba Tradicional Onde o Coro Come, aberto em janeiro no Rio, arte, moda, educação, tecnologia e comportamento se conectam ao samba. O projeto de Marcelo e de sua mulher e sócia, Luiza Machado, é espalhar a ideia por outras capitais brasileiras. “O projeto é compartilhar.”
Os dois e banda ainda têm mais planos fora do Brasil: em julho, levam a roda de samba em turnê por cidades europeias. Samba, segundo ele, é acolhimento e resistência. “Carnaval é o povo lutando pelo seu direito de festejar. O samba abraça tudo isso, a resistência de poder sambar enquanto está sendo massacrado e oprimido”, explica, animado por ter encontrado algo novo depois de tantos anos de carreira.
Mas por que o SXSW?
Acompanho o festival desde o começo. E achei que deveria vir para fazer negócio. A galera que está aqui está disposta a falar. A ideia nem era tocar, mas como sei fazer isso e faz barulho, estou animado.
A casa noturna em que se apresenta em Austin tem um aviso de que armas não são bem-vindas ali. “E onde seriam?”, pergunta o cantor. Mas choque cultural não é novidade para ele, suburbano carioca que sabe o que é comer pão na chapa em pé no balcão, mas já tocou em lugares como a loja de luxo Daslu, no Brasil, por exemplo.
Estou aqui para fazer contatos e conseguir fazer samba de graça para milhares de pessoas na rua. […] É quizomba para o povo cantar.
Legalização e família tradicional
Se há 30 anos, um jovem Marcelo D2 despontava cantando palavras de ordem ousadas para a época e pedindo a legalização da maconha na MTV, décadas depois o rótulo a ele atribuído parece ter perdido completamente o sentido. Em vários estados americanos, o consumo de maconha é legalizado e a conversa que cresceu bastante é sobre o uso medicinal das substâncias presentes na erva, como THC e CBD. Na cidade de Austin, é comum encontrar lojas que vendem bebidas com canabidiol, por exemplo. O assunto virou tão corriqueiro que a trilha do SXSW que tratava do tema foi extinta e evoluiu para estudo de psicodélicos, em geral, na edição de 2024.
A imagem do jovem maconheiro é substituída pela do pai de família — são cinco filhos, de 30 a 2 anos de idade. A mais nova, Bebel, se arrisca com o microfone com o pai no palco do SXSW no dia seguinte, quarta (13). “Iboru” é ancestralidade, o artista garante. “É um conceito de que Krenak fala há muito tempo: não se constrói um futuro sem olhar para trás. Olhar no olho é o que a gente faz há muito tempo”, diz sobre as conversas do festival que apontam o foco na nossa humanidade em meio a tantas novidades tecnológicas.
Curioso que em tempos de polarização o artista misture dois conceitos vistos como antagônicos no Brasil: a legalização da maconha e a família tradicional brasileira. “Meus cinco filhos moram comigo. Minha mulher é minha sócia e ninguém é mais família que eu. Nem preciso grudar adesivo no carro falando que amo a família porque eles sabem disso.”
Educação e tecnologia
Ele afirma que a geração Z, que é filha de pais liberais, tem um desafio a mais hoje nas mãos. “Antes, os pais obrigavam a ser advogado, por exemplo. Hoje, a gente orienta a ser feliz. É mais difícil! Ser advogado é só fazer faculdade”, ri. Segundo ele, a revolução digital é silenciosa e solitária. Se as telas deixam adultos ansiosos demais, imagine o que vem fazendo com as crianças.
O melhor conselho é dar o exemplo. Construir algo que seja interessante dentro e fora das telinhas. Uma amiga dizia que pessoas interessadas são pessoas interessantes. Eu acredito nisso. Vamos usar essa fonte de informação que é o celular a nosso favor e não apenas para derreter o cérebro.
Aos 56 anos, Marcelo impressiona pela jovialidade. O processo criativo, segundo ele, se junta à genética para manter o rosto de 30 e poucos anos depois de tanto tempo. Mas ele também diz que faz exercícios, procura se alimentar bem e segue fumando maconha. “Esqueci a letra que eu canto há 20 anos porque o THC daqui é mais forte que o de lá”, brinca no palco.
Para responder à americana de Boston intrigada com o telefone vermelho no palco: “Pelo telefone” é o nome da canção de Donga, tida como o primeiro samba gravado na história, há mais de um século, em 1917. “Iboru é isso, quanto mais a gente puxar o arco, mais para frente vai”, afirma Marcelo antes de lembrar ao público de Austin que também se luta com uma canção. Se traz luz, esperança e axé, é só chegar. O Brasil chega mesmo.